Carta potente, rebelde, evangélica e profética
Carta do Padre Assis Tavares

Paz e bem companheiros e companheiras da caminhada, de longe e de perto, que professam a fé, que não acreditam em Deus, mas que creem na humanidade e que uma nova civilização do amor é possível.
Eu nasci no arquipélago de Cabo Verde, banhado pelo mar atlântico. Da minha casa dormia com o bater das ondas e acordava com o mar agitado.
Desde cedo a minha família me ensinou o valor da liberdade,
do respeito, da solidariedade e da justiça. Cresci com o meu pai falando sobre
relatos de: a prisão injusta de Nelson
Mandela, Xanana Gusmão e referencias como Luther King, Malcom X, Amílcar
Cabral, Thomas Sankara, Angela Davis, Assata Shakur. Enfim, cresci no berço
repleto de testemunhas e gestos de filantropia, de acolhida e fraternidade.
Nesse palco da existência, o tempo foi passando e eu me
apaixonei pelos Missionários Espiritanos em 2001. Aprofundei-me e quis ser como
um dos milhares espalhados pelos cinco continentes. Com esta família religiosa
conheci Lisboa (de 2002 -2005), Amazônia, Tefé (de 2006-2007), Paris
(2007-2012) e finalmente Brasil, mais precisamente o nosso quilombo urbano,
Vila Prudente (2013-2022).
A nossa Regra de Vida Espiritana (RVS), ou seja, a nossa
carta Magna, tal como a Constituição, começa assim: “O Espírito do Senhor está
sobre mim, porque me ungiu para pregar o Evangelho aos pobres. Ele me enviou
para proclamar a libertação dos aprisionados e a recuperação da vista aos
cegos; para restituir a liberdade aos oprimidos” (Lucas 4, 18).
Me apaixonei profundamente e desmedidamente por isso, pois
ia ao encontro do que encontrei em casa de Silvério e Manuela (meus prezados
pais), na Ilha de Santiago.
Na Amazônia, Tefé, meu primeiro amor, ao longo das nossas
viagens de 15 a 20 dias, devorei todos os livros da Teologia de Libertação, de
Ceb’s, o pacto das Catacumbas, e sobretudo Eduardo Galeano, “As veias abertas
da América Latina”. Na minha pochete ou portfólio de CDS havia: Mercedes Sousa,
Zé Vicente, Pablo Milanés e Bob Marley.
Todo esse repertório fez com que eu me posicionasse desde
cedo dentro da minha família religiosa, levei e levo muito à sério a citação de
Lucas 4, 18. Eu escolhi o lado dos vencidos(as), chorei nas enchentes,
incêndios, como me diverti nos churrascos, natais, confraternizações, desfiles
da nossa escola de Samba, capoeira com o mestre Coquinho, cooperativa de
reciclagem, pastoral carcerária, movimento Negro, coletivos de imigrantes.
Levei enquadros da polícia, fui seguido no shopping pela
segurança e às vezes tive que correr para não apanhar. Eu ia para cima com brio
e vontade, pois a minha bussola sempre foi e será a construção de uma nova
civilização de Amor. Tanto é que pisei as terras sagradas, aonde Dom Pedro
Casaldáliga fundou o seu rincão missionário, “hasta à la muerte”.
Ao longo de 10 anos da Vila Prudente conheci pessoas de tudo
que é canto do mundo, de tudo que religião e filosofia. Na pandemia enterrei
mais de 50 pessoas e em outras ocasiões celebrei matrimônio tanto quanto. Porém, no meu círculo de amizade há,
sobretudo pessoas ateias, mas que creem veementemente no humano e muito humano.
Essas pessoas me ensinaram cada vez mais, o quanto é
paradoxal escolhermos o lado dos vencidos. Eu, como um jovem padre, de 39 anos,
não consigo subir no altar, não agradecendo a mãe terra, a pachamama pela vida,
como por outro lado, pedindo perdão pelo racismo, preconceito, homofobia,
transfobia, xenofobia, machismo da nossa mãe Igreja.
Eu como jovem preto, ontologicamente sou, porém não existo,
pois sou a carne mais barata do mercado. Ontologicamente o meu povo não existia
pois era um objeto de troca, de venda e mão de obra.
No século XV a grande contenda teológica foi se perguntar se
os povos originários tinham alma ou não? Um certo dia, Adolfo Hitler, acordou e
perguntou, será que os judeus, os ciganos são dignos de viver? Será que as
mulheres podem votar? E em pleno século XXI ainda a questão é: é permitido ou
não abençoar publicamente casais homoafetivos na Igreja Católica Apostólica
Romana.
A geração vindoura vai dar risada na nossa cara e perguntar,
quem inventou isso? Quem inventou Norte e Sul, países pobres e ricos?
Estamos discutindo uma coisa bem séria pois podemos ordenar
pessoas homoafetivas, mas não podemos abençoá-las. Porém a ordenação é uma
bênção lindíssima.
Eu nos meus 20 e poucos anos da caminhada, conheci
seminaristas, padres, bispos e cardeais homoafetivos, porém via e vejo pessoas
que amam, que dedicam, que se doam totalmente em prol do Reino de Deus. Porém
ontologicamente são “mas não existem”. Pois se amanhã quiserem construir
famílias e ter uma relação assumida, mesmo que doaram a vida inteira em prol do
reino, por enquanto, não terão direito a uma bênção oficial da madre Igreja
Católica, Apostólica Romana.
Eu prefiro um dia conversar com o meu sobrinho e minha
sobrinha que nem conheci ainda, dizendo que: o seu tio foi suspenso da
arquidiocese de São Paulo, por benzer pessoas. Porém não foi por causa de: ter
roubado a Igreja, ter enfrentado o caso de pedofilia, ter engravidado alguém, ter
que pagar pensão, ter separado famílias. Falarei isso para eles com muito
orgulho. Eu estaria com muita vergonha se fosse o contrário. Mas ainda bem que
não foi.
“Há pessoas que lutam um dia. Essas são boas. Há pessoas que
lutam um ano. Essas são melhores. Mas há pessoas que lutam a vida inteira.
Estas, estas são imprescindíveis” Dom Hélder Câmara.
Hoje voltarei para as minhas raízes, me refazer, conhecer as
minhas sobrinhas, abraçar os meus vôs, celebrar o Luto do meu vô, respirar o ar
das ilhas e sobretudo dormir e acordar, com consciência tranquila, ao som das
ondas.
Pindamonhangaba 224 foi por 10 anos a sede da ONU, dos
países, dos imigrantes, dos sem-teto, dos lascados. A Campainha agora vai
tocar, mas ontologicamente não sei se alguém vai abrir, mesmo chateado de
madrugada, com sorriso, perguntando, “oh disgrama, essa hora”? Tentei ser
pastor com os meus limites, as minhas falhas e virtudes.
Agradeço toda a solidariedade, de dentro e de fora, de perto
e de longe, sobretudo da Área Pastoral São José Operário pelo carinho, acolhida
e amor. Como adoro e sigo a linha dos Racionais MCs, “eu sou o negro drama...
eu vivo negro drama” dentro da Instituição, porém apoiado por mais de 50 mil
manos”. Vou sem me despedir, porém vocês
estão tatuados no coração desse citoyen du monde (cidadão do mundo) e irmão
universal. Axé, ameuri!
Favela da Vila Prudente, 07 de dezembro de 2022
Assis Mendes Tavares, CSSp
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