Carta potente, rebelde, evangélica e profética

Carta do Padre Assis Tavares

                   Padre Assis Tavares - foto: Facebook  

Paz e bem companheiros e companheiras da caminhada, de longe e de perto, que professam a fé, que não acreditam em Deus, mas que creem na humanidade e que uma nova civilização do amor é possível.

Eu nasci no arquipélago de Cabo Verde, banhado pelo mar atlântico. Da minha casa dormia com o bater das ondas e acordava com o mar agitado.

 

Desde cedo a minha família me ensinou o valor da liberdade, do respeito, da solidariedade e da justiça. Cresci com o meu pai falando sobre relatos de:  a prisão injusta de Nelson Mandela, Xanana Gusmão e referencias como Luther King, Malcom X, Amílcar Cabral, Thomas Sankara, Angela Davis, Assata Shakur. Enfim, cresci no berço repleto de testemunhas e gestos de filantropia, de acolhida e fraternidade.

 

Nesse palco da existência, o tempo foi passando e eu me apaixonei pelos Missionários Espiritanos em 2001. Aprofundei-me e quis ser como um dos milhares espalhados pelos cinco continentes. Com esta família religiosa conheci Lisboa (de 2002 -2005), Amazônia, Tefé (de 2006-2007), Paris (2007-2012) e finalmente Brasil, mais precisamente o nosso quilombo urbano, Vila Prudente (2013-2022).

 

A nossa Regra de Vida Espiritana (RVS), ou seja, a nossa carta Magna, tal como a Constituição, começa assim: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para pregar o Evangelho aos pobres. Ele me enviou para proclamar a libertação dos aprisionados e a recuperação da vista aos cegos; para restituir a liberdade aos oprimidos” (Lucas 4, 18).

 

Me apaixonei profundamente e desmedidamente por isso, pois ia ao encontro do que encontrei em casa de Silvério e Manuela (meus prezados pais), na Ilha de Santiago. 

 

Na Amazônia, Tefé, meu primeiro amor, ao longo das nossas viagens de 15 a 20 dias, devorei todos os livros da Teologia de Libertação, de Ceb’s, o pacto das Catacumbas, e sobretudo Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”. Na minha pochete ou portfólio de CDS havia: Mercedes Sousa, Zé Vicente, Pablo Milanés e Bob Marley.

 

Todo esse repertório fez com que eu me posicionasse desde cedo dentro da minha família religiosa, levei e levo muito à sério a citação de Lucas 4, 18. Eu escolhi o lado dos vencidos(as), chorei nas enchentes, incêndios, como me diverti nos churrascos, natais, confraternizações, desfiles da nossa escola de Samba, capoeira com o mestre Coquinho, cooperativa de reciclagem, pastoral carcerária, movimento Negro, coletivos de imigrantes.

 

Levei enquadros da polícia, fui seguido no shopping pela segurança e às vezes tive que correr para não apanhar. Eu ia para cima com brio e vontade, pois a minha bussola sempre foi e será a construção de uma nova civilização de Amor. Tanto é que pisei as terras sagradas, aonde Dom Pedro Casaldáliga fundou o seu rincão missionário, “hasta à la muerte”.

 

Ao longo de 10 anos da Vila Prudente conheci pessoas de tudo que é canto do mundo, de tudo que religião e filosofia. Na pandemia enterrei mais de 50 pessoas e em outras ocasiões celebrei matrimônio tanto quanto.  Porém, no meu círculo de amizade há, sobretudo pessoas ateias, mas que creem veementemente no humano e muito humano.

 

Essas pessoas me ensinaram cada vez mais, o quanto é paradoxal escolhermos o lado dos vencidos. Eu, como um jovem padre, de 39 anos, não consigo subir no altar, não agradecendo a mãe terra, a pachamama pela vida, como por outro lado, pedindo perdão pelo racismo, preconceito, homofobia, transfobia, xenofobia, machismo da nossa mãe Igreja.

 

Eu como jovem preto, ontologicamente sou, porém não existo, pois sou a carne mais barata do mercado. Ontologicamente o meu povo não existia pois era um objeto de troca, de venda e mão de obra.

 

No século XV a grande contenda teológica foi se perguntar se os povos originários tinham alma ou não? Um certo dia, Adolfo Hitler, acordou e perguntou, será que os judeus, os ciganos são dignos de viver? Será que as mulheres podem votar? E em pleno século XXI ainda a questão é: é permitido ou não abençoar publicamente casais homoafetivos na Igreja Católica Apostólica Romana.

 

A geração vindoura vai dar risada na nossa cara e perguntar, quem inventou isso? Quem inventou Norte e Sul, países pobres e ricos?

Estamos discutindo uma coisa bem séria pois podemos ordenar pessoas homoafetivas, mas não podemos abençoá-las. Porém a ordenação é uma bênção lindíssima.

 

Eu nos meus 20 e poucos anos da caminhada, conheci seminaristas, padres, bispos e cardeais homoafetivos, porém via e vejo pessoas que amam, que dedicam, que se doam totalmente em prol do Reino de Deus. Porém ontologicamente são “mas não existem”. Pois se amanhã quiserem construir famílias e ter uma relação assumida, mesmo que doaram a vida inteira em prol do reino, por enquanto, não terão direito a uma bênção oficial da madre Igreja Católica, Apostólica Romana.

 

Eu prefiro um dia conversar com o meu sobrinho e minha sobrinha que nem conheci ainda, dizendo que: o seu tio foi suspenso da arquidiocese de São Paulo, por benzer pessoas. Porém não foi por causa de: ter roubado a Igreja, ter enfrentado o caso de pedofilia, ter engravidado alguém, ter que pagar pensão, ter separado famílias. Falarei isso para eles com muito orgulho. Eu estaria com muita vergonha se fosse o contrário. Mas ainda bem que não foi.

 

“Há pessoas que lutam um dia. Essas são boas. Há pessoas que lutam um ano. Essas são melhores. Mas há pessoas que lutam a vida inteira. Estas, estas são imprescindíveis” Dom Hélder Câmara.

 

Hoje voltarei para as minhas raízes, me refazer, conhecer as minhas sobrinhas, abraçar os meus vôs, celebrar o Luto do meu vô, respirar o ar das ilhas e sobretudo dormir e acordar, com consciência tranquila, ao som das ondas.

 

Pindamonhangaba 224 foi por 10 anos a sede da ONU, dos países, dos imigrantes, dos sem-teto, dos lascados. A Campainha agora vai tocar, mas ontologicamente não sei se alguém vai abrir, mesmo chateado de madrugada, com sorriso, perguntando, “oh disgrama, essa hora”? Tentei ser pastor com os meus limites, as minhas falhas e virtudes.

 

Agradeço toda a solidariedade, de dentro e de fora, de perto e de longe, sobretudo da Área Pastoral São José Operário pelo carinho, acolhida e amor. Como adoro e sigo a linha dos Racionais MCs, “eu sou o negro drama... eu vivo negro drama” dentro da Instituição, porém apoiado por mais de 50 mil manos”.  Vou sem me despedir, porém vocês estão tatuados no coração desse citoyen du monde (cidadão do mundo) e irmão universal. Axé, ameuri!

                                                        

Favela da Vila Prudente, 07 de dezembro de 2022

 Assis Mendes Tavares, CSSp

 

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